BUENO,
Justino de Almeida. Introdução à leitura da vida de São Bento. In: GREGÓRIO
MAGNO. São Bento. Vida e milagres.
Juiz de Fora: Edições Subiaco, 2010.
Victor Hugo de
Oliveira Marques
“Pascit vita, pascit doctrina, pascit et intercessione”
(Bernardo de Claraval)
“... dar uma visão menos romântica da vida do
homem de Deus...” e “mais fiel à finalidade da obra de São Gregório Magno”[1]
são os dois propósitos fundamentais justificados por Dom Justino de Almeida
Bueno – monge beneditino e professor na Faculdade de São Bento do Rio de
Janeiro – para sua “Introdução à leitura
da vida de São Bento”, texto preambular à edição do Livro II dos “Diálogos” de Gregório Magno, publicado
pela Edições Subiaco, sob título “São
Bento. Vida e Milagres”. Com efeito, a fim de cumprir esse duplo propósito,
afirma o autor, foi lançada mão os estudos e comentários a São Bento de Dom Adalbert
De Vogüé, encontrados na introdução e nas notas à edição dos “Diálogos” da coleção “Sources
Chrétiennes” editada pela Abbaye de Bellefontaine[2].
Tais estudos utilizados para a confecção desse texto introdutório pretendem,
antes de tudo, evidenciar o lugar central ocupado por Bento na obra “Diálogos”
de São Gregório Magno, bem como, mostrar a unidade que há entre os quatro
livros dos “Diálogos” com a literatura hagiográfica tardia. De modo similar,
argumenta Dom Justino: “o nosso objetivo aqui é, também, oferecer aos leitores
de língua portuguesa um mais profundo conhecimento do Segundo Livro dos
Diálogos, partindo do plano e das fontes que estão na sua origem”.
A “Introdução à leitura da vida de São Bento”, como o próprio título
deduz, é um discurso preambular, é uma porta de acesso. E, por tal caráter, não
tem a obrigação de revelar tudo, senão apenas aquilo que lhe compete. Para Dom
Justino, o que lhe compete são cinco capítulos e uma conclusão, o que é de se
estranhar. Como um discurso introdutório pode dar-se o luxo de concluir o que
nem abriu? Na verdade, o que se apresenta como “Conclusão” é um elemento que
está presente em todo o seu texto. O que o autor quer chamar de conclusão é uma
esperança: “Esperamos que essa nova
edição do Livro II [...] seja um incentivo aos estudos acerca do monaquismo
beneditino...”[3];
uma esperança que serve de abertura para novos interesses, novas
interpretações, novas vivências. Essa mesma esperança aparece em um texto que
antecede essa introdução (Nossa nova
edição): “Esperamos que essa nova
edição contribua para que o conhecimento da vida e do espírito de São Bento
[...] ultrapasse o mero gosto pelo maravilhoso e aprofunde suas raízes nas
fontes da Escritura e da tradição monástica...”. Assim, pode-se dizer, esse
discurso introdutório de Dom Justino Bueno, além de seus propósitos já
apresentados, é também um discurso perpassado pela esperança – virtude teologal
essa muito presente na vida e na experiência beneditina – de alguém que não escreve
de modo distante ou despretensiosamente, mas de modo engajado, convicto de que
as “verdades” ali expressas abrem-se para realidades transcendentes e que,
oxalá, não parem por ali. De antemão, tem-se nas mãos um texto beneditino
escrito por um beneditino.
Como bem indica Dom Justino, é um
texto que procura “dar uma visão”. Esse propósito aparece também no próprio
título: “Introdução à leitura...”. Isso
é bem significativo quando, depois de tomar posse do texto, se percebe que seu
autor, bem da verdade, procura oferecer ao leitor um modo de ler mais do que qualquer coisa. Entretanto, esse modo
não é o único e seu autor tem consciência disso. Aliás, o propósito de Dom
Justino no que se refere ao modo de ler é apresentar os elementos articuladores
entre a vida de Bento e os propósitos de Gregório, sem o qual, tanto um quanto
o outro não teriam sentido no plano da obra de Gregório. Assim, conhecer “a
verdadeira intenção de Gregório”, enquanto modo de ler a vida de Bento de
Nursia em relação direta ao Livro II, é o que essa introdução quer garantir.
Por outro lado, além de ser um guia de leitura do Livro II, tal texto tem um
segundo propósito: a fidelidade à obra de Gregório. Fidelidade do que?
Obviamente, da vida de São Bento. Esse propósito também aparece no título “...
leitura à vida de São Bento”. Desse
modo, o segundo propósito assumido por Dom Justino é apresentar um pequeno
prólogo que garanta elementos biográficos da vida do criador da Santa Regra.
Sem perder o vínculo com o plano geral dos Diálogos, o texto introdutório
procura, também, garantir que o leitor tenha informações suficientes da vida o
santo italiano e padroeiro da Europa.
Cinco capítulos e uma conclusão, é
tudo o que Dom Justino precisa para levar a cabo os propósitos acima discorridos.
Encetando por uma breve biografia de Gregório Magno, sobretudo o contexto pelo
qual se deu a produção da obra “Diálogos”, no capítulo primeiro, Dom Justino
quer dar ênfase a um aspecto que já havia sido levantado por Dom Keller: o da grandeza de um santo escrito por outro santo,
com se pode conferir: “Poderia alguém descrever a vida do legislador monástico
com maior compreensão e penetração espiritual do que S. Gregório, congenial a
Bento não apenas pelos dotes naturais, mas também pela santidade?”. O segundo
capítulo levanta a questão dos propósitos de Gregório para redigir sua obra.
Entre mitos e lendas, Dom Justino entende que, muito mais do que mera
curiosidade ou satisfação pessoal, está a intenção do papa em aprofundar a
temática da santidade: “... os Diálogos nos apresentam uma criação literária na
qual Gregório investiu suas ideias a respeito da santidade”. O terceiro
capítulo é uma análise da relação existente entre o milagre e a santidade. De
acordo com Dom Justino, o milagre é um componente essencial da tradição cristã,
encontrando-se muito presente em um estilo literário específico denominado
hagiografia, que procura fazer do milagre uma condição sine qua non da santidade. Apesar dessa relação hodiernamente ser deveras
questionada nas literaturas biográficas dos santos – de modo a preferir os
traços psicológicos de uma personalidade que se manteve comprometida com a
causa humana – a Igreja ainda considera necessário, como testemunho de
santidade, a presença dos milagres. Seja como for, Dom Justino entende que, em
se tratando dos Diálogos, é cogente entendê-lo dentro do espírito hagiográfico.
Não apenas para ressaltar os milagres do santo
Bento, mas para mostrar “a vitória de Cristo e do Espírito Santo sobre o
sofrimento”.
O quarto capítulo tem uma intenção
mais formal, ou seja, é a apresentação estrutural da obra gregoriana “Diálogos”. Proposital ou não e em
consonância com os estudos de De Vogüé, Dom Justino procura sustentar que o
Livro II dos “Diálogos” é, na
verdade, o lugar de Bento de Nursia nessa obra. Ladeado de dois livros (Livros I
e III) com importâncias menores, a biografia de São Bento salta aos olhos como
o lugar reservado ao “santo” da obra gregoriana. O Livro IV seria uma espécie
de “coroamento escatológico para o qual tende toda a obra”. É, portanto, no
capítulo quinto que o autor apresenta os elementos propriamente biográficos de
Bento, pois tem como conteúdo o Livro II propriamente dito. Esses elementos,
por sua vez, seguem o mesmo ritmo de Gregório, i. é, a partir de um “itinerário
espiritual”, estilo esse muito comum em toda literatura hagiográfica e que será
ampliado no século XIII com São Boaventura. A escolha desse estilo é
proposital, uma vez que seu autor intenciona destacar as intenções de Gregório
com a revisitação da vida de Bento. Nos termos de Dom Justino, “A vida de Bento
torna-se, assim, não só a história da vida santa, mas um protótipo da santidade
que todos são chamados a viver”. Desse modo, Bento não é apenas um santo entre
tantos outros, mas sua vida pode ser tomada como um itinerário, um modus vivendi. Ademais, não obstante a esse
propósito de fazer saltar os olhos as intenções de Gregório com a biografia de
Bento, Dom Justino procura, nesse pequeno “resumo” do Segundo Livro dos “Diálogos”, figurar a “visão de conjunto
da vida do nosso santo”, a fim de reprochar os equívocos e preconceitos a
respeito tanto da vida de Bento quanto do texto de Gregório, em especial, o
caráter “exorcista” e “protetor contra as mordidas de serpente”. Por fim, na
sua Conclusão, chega a termo: “a imagem de Pai amoroso e cheio de piedade, de
Mestre severo e exigente, que emerge da Regra escrita por ele, deve,
necessariamente, ser completada por aquela do Livro II dos Diálogos, onde ele
aparece como o monge que ‘vive consigo mesmo’, sob o olhar de Deus”.
Em uma linguagem relativamente simples,
mas com a seriedade científica de um bom beneditino, os cinco capítulos
acrescidos da conclusão são tomados como suficientes, por seu autor, para essa função
preambular. A partir dessa estrutura, alguns pontos ainda podem ser sublinhados.
Dom Justino parte da aceitação da tese de Dom De Vogüé que o Livro II da obra
gregoriana não é uma mera biografia, mas uma construção literária específica:
um “itinerário espiritual”; isso porque, a todo tempo, seu autor quer destacar
a existência de uma relação entre a
biografia de Bento e as intenções de Gregório. Esse, me parece, é o
elemento nuclear de toda a sua introdução, que tem seu ápice no terceiro e
quarto capítulo, aos quais são discutidos o conceito de santidade e qual deve
ser seu lugar no conjunto da obra. É com essa discussão que aparece a figura de
Bento, como modelo e protótipo de santidade. Essa preocupação, que perpassa
todo o preâmbulo de Dom Justino, tem sua importância na hora da apropriação do
Livro II dos Diálogos, ou seja, os alertas dados por Dom Justino sobre o modo
de ler o referido livro têm a intenção de subtrair qualquer apropriação romântica
ou popular de Bento. Tal preocupação é pertinente uma vez que o próprio autor
tem interesses em defender uma leitura mais justa, ou menos “romântica” de São
Bento. Destarte, é compreensível que o autor do preâmbulo gaste tempo em
mostrar as condições histórico-literárias da construção da obra gregoriana,
haja vista que tal literatura deve servir como fonte de pesquisa sobre o santo
italiano.
Por outro lado, se há uma tácita preocupação
de Dom Justino em “dar uma visão menos romântica” à biografia de Bento, há
ainda uma ausência de detalhamentos quanto ao real cerne da questão para Gregório.
Em primeiro lugar, nota-se que o autor da “Introdução à leitura da vida de São
Bento” aceita acriticamente as propriedades intelectuais do papa biógrafo. Aliás,
não há nenhum questionamento quanto as credenciais desse biógrafo para tal
escrito, pelo contrário, há sérios elogios a Gregório e a sua obra, como se
nota no primeiro capítulo. Não se duvida que Gregório é um dos grandes
escritores patrísticos e que sua obra tenha relevância para a construção do
pensamento cristão. A questão que se abre é: será que a intenção de Gregório com a biografia de Bento corresponde à intenção
defendida por Dom Justino com a biografia de Bento? Assim, em segundo
lugar, quando se levanta quais são as intenções do papa ao escrever sobre
Bento, Dom Justino argumenta que as razões dadas por Gregório – a satisfação da
curiosidade de alguns amigos – seriam insuficientes para uma obra de tal
magnitude. Nesse sentido, ele aceita a tese de De Vogüé que apóia a ideia de
que, para Gregório, Bento é constituidor de elementos de santidade que servem
de modelo para os cristãos, sendo esse o elemento motivador da construção do
segundo livro dos diálogos e seu lugar nessa obra. Ora, seria realmente São Bento
a motivação de Gregório, como modelo de santidade, ou o inverso, é a própria santidade
a motivação e Bento apenas um personagem secundário? Caso a explicação dada por
Gregório seja, em alguma instância, verdadeira, indo de encontro com a tese de
Dom De Vogüé, Bento não seria a motivação para a construção do Livro II, uma
vez que Gregório tem em mente, e De Vogüé confirma isso, a santidade. De modo sintético,
a questão é saber se Bento é a inspiração modelo para a santidade ou se a
santidade é a inspiração modelo para compreender Bento, pergunta essa que fica
aberta pela ausência de detalhamento dessas intenções de Gregório por Dom
Justino.
Não obstante às questões acima, o
texto introdutório de Dom Justino constitui, tanto do ponto de vista da forma
quanto do conteúdo, um excelente instrumento de preparação para a leitura do
Livro II dos Diálogos, bem como do próprio “Diálogos”. Ele se constitui, pela
sua própria estrutura interna, em um elemento norteador e delineador da apropriação
do texto gregoriano, respeitando seu estilo e propósito, de modo a cumprir seus
objetivos indicados por seu autor. De modo geral, o texto preambular, por
sinal, muito bem fundamentado teoricamente, pode e deve ser usado como um
instrumento preparatório para a obra gregoriana, mais do que uma introdução à
vida de são Bento, haja vista as questões levantadas acima a respeito da relação
entre Bento e a santidade. Assim, recomenda-se o presente texto a todos quantos
desejam encetar uma leitura atenta aos Diálogos, propriamente dito, de
Gregório.
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