NATUREZA E TAREFAS DE UMA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA


O Problema da Natureza de uma Reflexão Filosófica sobre o Anthropos

É óbvio que qualquer estudo Antropológico tenha como natureza a pergunta pelo anthropos. A máxima socrática do “Conhece-te a ti mesmo”, tal como recorda Groethuysen (1982, p.09), “é o tema de toda a antropologia [...]”. Contudo, ao se tratar de Antropologia Filosófica, ou seja, de uma reflexão filosófica sobre o anthropos, duas coisas devem ser distinguidas antes de qualquer consideração: a facticidade da pergunta pelo humano e a teorização sobre essa pergunta.

No que diz respeito à primeira, não há dúvidas que a pergunta pelo anthropos é um fato e sua facticidade é anterior a qualquer discurso sobre o humano e, ainda, anterior à própria teorização dessa pergunta. Diz Lima Vaz (1998, p.09):

Desde a aurora da cultura ocidental (cujos começos se situam convencionalmente em torno do século VIII a.C., na Grécia), a reflexão sobre o homem, aguilhoada pela interrogação fundamental ‘o que é o homem?’, permanece no centro das mais variadas expressões da cultura: mito, literatura, ciência, filosofia, ethos e política. Nela emerge com fulgurante evidência essa singularidade própria do ser humano que é a de ser o interrogador de si mesmo [...].

A anterioridade da pergunta por si mesmo, como mostra Lima Vaz, não diz respeito apenas a um dado temporal ou cultural dos gregos arcaicos. Mais do que isso, indica evidentemente uma peculiar “singularidade própria do ser humano” que é ser “interrogador de si mesmo”. Ou seja, o fato de o ser humano perguntar por si mesmo além de apontar para a condição factual de anterioridade da pergunta por si mesmo, diz ainda de sua peculiar condição de ser. O dado cognitivo que aparece na pergunta instaura, na verdade, uma prerrogativa para uma investigação ontológica. Heidegger já tinha alertado para esse modo característico do ser do homem quando inicia sua exposição ontofenomenológica presente em Ser e Tempo tendo por base o Dasein, aquele que tem como modo de ser o perguntar pelo ser.

Esse modo de ser “interrogador de si mesmo” do anthropos, segundo Marconetti, é sua própria condição de possibilidade de humano. Isso significa que o humano que pergunta por si mesmo, só o faz porque, de algum modo, já se pré-autocompreende. O anthropos que se singulariza ontologicamente tendo por base a facticidade da pergunta pelo seu ser-homem, assim acontece à medida que ele já é possuidor de um conhecimento prévio de si, mesmo que tal conhecimento seja ainda superficial e infundado. Esse conhecimento prévio de si é denominado de pré-autocompreensão e a partir do qual se caracteriza a autoconsciência. Assim, o anthropós é “caracterizado pela autoconsciência e pela autocompeensão”. Neste ponto se encontra o dado mais fundamental da natureza da reflexão filosófica sobre o anthropos: o reconhecimento da necessidade do perguntar-se por si; esse reconhecimento que fortuitamente desemboca no processo de teorização, é, antes de tudo, a constatação de que todo perguntar por si, enquanto pergunta fáctica e anterior pelo anthropos, é uma autocompreensão e não há como escapar dela.

Essa singularidade “interrogadora” do humano, enquanto autocompreensão, indica, de algum modo, uma aproximação ou uma identificação entre o anthropos e a sofia – já que ambos geneticamente estão imbuídos do apelo à admiração, i. é, o “homem não é apenas o sujeito da admiração, mas também o seu objeto” (RABUSKE, 1987, p.11) – o que explica, por exemplo, a afirmação de Rabuske (1987, p.11): “Como disciplina filosófica, a Antropologia tem a mesma origem que a filosofia em geral”. Essa co-pertença entre anthropos e sofia é que permite a passagem do modo de ser autocompreensivo humano para uma compreensão filosófica tematizada. Desse modo uma antropologia filosófica, como discurso ou teorização, é sempre um ato posterior à facticidade da pergunta pelo si mesmo e seu desafio está na passagem da pré-autocompreensão para a teorização de si mesmo.

[...] na realidade é difícil tematizar tal autocompreensão de modo conveniente, sem cair em interpretações errôneas, redutivas e deformantes da essêncIa do homem. Mas a pergunta não pode receber uma resposta exautiva e definitva, porque cada homem (e cada geração) põe sempre de novo a mesma pergunta à luz das respostas que a tradição lhe fornece (MARCONETTI)

Essa anterioridade fáctica da pergunta por si mesmo e que, de algum modo, determina ontologicamente o humano, é que permite descrever ou elaborar uma teoria sobre o anthropos bem como reconstruir sua história. Sem a essa indagação primeira condicionada por uma autocompreensão, intrínseco ao humano, é impossível pensar em qualquer investigação posterior. Qualquer antropologia filosófica deve ser construída sobre o fato da inalienável condição de que o ser humano se pergunta por ele mesmo e essa pergunta já é uma autoconsciência. Nas palavras de Cassirer, é impossível pensar uma antropologia filosófica que se fixe apenas numa reflexão exteriorizada sem levar em consideração sua interioridade: “Podemos criticar o ponto de vista puramente introspectivo ou desconfiar dele, mas não podemos suprimi-lo nem eliminá-lo” (1977, p.16). Esse, em poucas palavras, é o problema de abordagens naturalistas do humano que o julga com métodos empírico-formais acreditando estar de posse do todo.

 Assim, é sobre essa diferença – a facticidade da pergunta pelo humano e a teorização da pergunta – que se concebe a natureza de uma antropologia filosófica. E tal natureza que implica numa dualidade impõe sobre si mesma um exercício hermenêutico:

[...] nós podemos explicar e interpretar de maneira humana os fenômenos e os modos de comportamento do homem primitivo absolutamente só a partir de nós mesmos, no horizonte da nossa autocompreensão [...] Nesse modo de proceder nos achamos num problema hermenêutico de importância fundamental (MARCONETTI).

Nesse sentido, impõe-se, enquanto parte da natureza de uma antropologia filosófica, uma forma de círculo antropológico. Isso significa que “não se dá mais um ponto de partida absolutamente privado de pressupostos, a partir do qual se poderia desenvolver uma antropologia filosófica”, ou ainda “não podemos refletir sobre nós mesmos abstraindo-nos do nosso ser e existir concreto” (MARCONETTI). Uma reflexão filosófica sobre o humano tem por natureza esse círculo entre aquilo que posso dizer (teorizar) e aquilo que já pré-compreendo (experiência, vivência). Uma natureza circular impõe sobre si mesma uma reflexão sobre sua tarefa central.

As Tarefas de uma Reflexão Filosófica sobre o Anthropos

Reconhecida a natureza hermenêutica da reflexão filosófica sobre o anthropos, é necessário pensar suas tarefas ou sua tarefa central. Comenta Rabuske (1987, p.7) que a tarefa central de uma antropologia filosófica é responder a pergunta: O que é o homem? Contudo, não somente a pergunta deve ser encarada como filosófica como também sua resposta o que implica dizer que todas as tentativas de responder à pergunta deve ter o cuidado metodológico para evitar reducionismos, simplismos e, por fim, equívocos.

Como teorização da pergunta por si mesmo, a antropologia filosófica é uma discussão recente. Como já dito, isso não significa que não já se tenha perguntado e respondido várias e várias vezes na história do pensamento. O que se quer dizer é que a teorização da pergunta pelo anthropos, ou como diria Diemer, uma “antropoteoria” (DIEMER apud LIMA VAZ, 1998, p.20), enquanto antropologia filosófica, só apareceu mesmo com Max Scheler em sua obra A posição do Homem no Cosmos (1928) quando este constata:

[...] possuímos uma Antropologia (tradicional) de ciência natural, uma filosófica e uma teológica, que não se preocupam uma com a outra – mas não possuímos uma ideia unitária do homem. A pluralidade sempre crescente de ciências especiais, que se ocupam com o homem, encobre [...] muito mais a essência do homem do que a iluminam (SCHELER, apud RABUSKE, 1987, p.12-13).

Desse modo, mesmo considerando que uma antropologia filosófica tenha várias tarefas fundamentais, como de fato tem, uma delas deve ser central: ao lado as ciências tradicionais, seja de ordem do espírito (Geisteswissenschaften), seja de ordem natural (Naturwissenschaften), sem prescindi-las ou exaltá-las, uma reflexão filosófica sobre o anthropos tem como tarefa delinear ou indicar as condicionantes necessárias para uma visão integradora ou que, no mínimo, singularize a humanidade do humano.

Para tanto, Lima Vaz oferece três pistas:
a)    A elaboração de uma ideia do homem que leve em conta, de um lado, os problemas e temas presentes ao longo da tradição filosófica e, de outro, as contribuições e perspectivas abertas pelas recentes ciências do homem;
b)    Uma justificação critica dessa ideia, de modo que possa apresentar-se como fundamento da unidade dos múltiplos aspectos do fenômeno humano implicados na variedade das experiências com que o homem se exprime a si mesmo, e investigados pelas ciências
c)    Uma sistematização dessa ideia do homem tendo em vista a constituição de uma ontologia do ser humano capaz de responder ao problema clássico: O que é o homem? 

Portanto, como afirma Rabuske (1987, p.13), a tarefa de uma antropologia filosófica é “compreender e expressar o que ele é, o que ele pode e deve ser”, ou seja, “colher e pensar radicalmente o homem na sua inteireza” (MARCONETTI).

Referências

CASSIRER, Ernest. Antropologia Filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1977. 

GROETHUYSEN, B. Antropologia filosófica. Lisboa: Editoria Presença, 1982.

LIMA VAZ, Henrique C. de. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1998.

MARCONETTI, L. Quem ‘eu sou’?: Antropologia Filosófica. Texto apostila.


RABUSKE, Edvino. Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1987.

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