É muito comum nos estudos do conhecimento o uso indiscriminado de
“Teoria do Conhecimento” e “Epistemologia”, como afirma Dutra (2010, p.09): “Epistemologia é o termo que mais frequentemente
empregamos hoje para nos referirmos à ‘teoria do conhecimento’ – a disciplina
tradicional dos currículos dos cursos de filosofia”. Outros nomes também são
passíveis de serem encontrados, em especial, em manuais mais antigos, como é o
caso do clássico “Teoria do Conhecimento
(Gnoseologia e Criteriologia)”. Contudo, haveria uma distinção possível?
Sim há.
Classicamente, Santos (1960, p.32,
grifo nosso) argumenta: “... a Criteriologia seria a própria Teoria
do Conhecimento ou Gnosiologia, na parte em que aprecia o valor dos nossos
conhecimentos, quando ela enfrenta o tema principal e final, que é a verdade”;
já a Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia, propriamente, seria “um
saber teórico do conhecimento, ponto de partida para o estudo da Metafísica, em
seus diversos aspectos” (SANTOS, 1960, p.31). Em outras palavras, Gnosiologia, ou, que é o mesmo, Teoria do Conhecimento, por serem os
termos mais antigos, são usados para estabelecerem o campo do conhecimento que
reflete todas as relações advindas do conhecimento, enquanto que Criteriologia, por ser mais recente, tem
uma preocupação mais pontual e específica, que é a relação entre o conhecimento
e a verdade.
Por outro lado, o termo Epistemologia, apesar
de remeter a uma origem muito antiga (do léxico episteme já conhecido pela Grécia antiga), tem um sentido bastante
recente. De acordo com Blanché (1975), a expressão, no sentido como a
conhecemos hoje, aparece pela primeira vez em 1906 no suplemento Larousse ilustrado[1].
Em contrapartida, Dutra (2010) afirma que o termo “epistemology”, em inglês, é anterior à essa data, tendo sido
introduzido no século XIX pelo filósofo escocês James F. Ferrier. Para a escola
francesa, o termo épistémologie era
usado, com mais frequência, para referir-se à “filosofia da ciência”, mas hoje,
com a influência da escola inglesa, o termo acaba também se referindo à teoria do conhecimento.
Para os ingleses, o que se compreende por epistemologia são duas
situações: a da justificação da veracidade
das sentenças e do processo de
aquisição do conhecimento. Esses dois momentos são respectivamente
denominados de epistemologias da justificação e da investigação, sendo que o
primeiro trata dos processos lógicos da cognição e o segundo dos processos psicológicos
da cognição. Seguindo Blanché (1975), para aquelas correntes em que não há
conhecimento válido que não o científico, como é o caso das teorias advindas do
positivismo, teoria do conhecimento e epistemologia também se confunde e
realmente devem ser tidas por sinônimas, uma vez que toda teoria do
conhecimento só a é enquanto teoria do conhecimento científico. De outro modo
ainda, há aqueles que fazem uso da epistemologia como filosofia da ciência ou
mesmo parte da filosofia da ciência, ressaltando, nessa perspectiva, sua
relação com a filosofia. Nesse caso, ela seria uma reflexão filosófica sobre os
princípios, métodos e fundamentos da ciência em geral, não se restringindo
apenas à sua possibilidade cognoscitiva.
Com efeito, se tomarmos a distinção de Zilles (2008) temos:
epistemologia ou teoria da ciência é “o estudo dos princípios, dos critérios,
dos processos e da metodologia das ciências” (ZILLES, 2008, p.34), que hoje,
praticamente, segundo esse autor, se restringe a uma espécie de lógica aplicada.
Nesse sentido, seja empírico ou não, as teorias das ciências já pressupõem o
conhecimento e a formulação de que este é verdadeiro ou falso. Enquanto que a
teoria do conhecimento, não pressupondo o conhecimento, não é uma ciência
empírica, mas filosófica. Ademais, prossegue Zilles (2008), a teoria do
conhecimento não é metafísica – ainda que, segundo Santos (1960, p.31), ela
seja “o ponto de partida para o estudo da Metafísica”[2].
Isso significa que, rigorosamente, a teoria do conhecimento seria “ciência não-empírica
do empírico” (ZILLES, 2008, p.37); ou, como vai dizer Santos (1960, p.31): “é
um saber teórico do conhecimento”; ou ainda nos termos de Hessen (2003, p.13) “teoria material da ciência ou como
teoria dos princípios materiais do conhecimento humano”.
Para nós, contrariando as filosofias inglesas e positivistas e nos
aproximando da filosofia francesa bem como de toda tradição filosófica, o que
se considera propriamente por “epistemologia” é aquela teoria que trata do
conhecimento especificadamente científico. A partir dessa especificação, a epistemologia se distingue da “teoria do
conhecimento” e ou “gnosiologia” na medida em que esta se preocupa com a
possibilidade do conhecimento em geral. Desse modo, a teoria do
conhecimento seria mais abrangente podendo até incluir a epistemologia como uma
de suas divisões, enquanto que a epistemologia se restringiria às
especificações internas do conhecimento científico. É claro que a epistemologia
acaba interagindo com essas três instâncias: a inteligibilidade científica, a
teoria do conhecimento e a filosofia da ciência, demarcando maiores ou menores
participações dependendo das perspectivas a que se persegue.
Propriamente, a Teoria do Conhecimento é um campo atual, pois “Historicamente, nem na
Antiguidade grega nem na chamada Idade Média, nem em nossa cultura, há
propriamente uma disciplina autônoma que se possa considerar como sendo a
Gnosiologia, embora os temas gnosiológicos estivessem presentes desde os
gregos, sobretudo no período crítico dos sofistas, e em todos os momentos
dramáticos da filosofia” (SANTOS, 1969, p.31). Na Escolástica,
dá continuidade o mesmo autor, há algumas tentativas de abordagens de temas gnosiológicos
na Lógica Maior – a qual gerou a distinção clássica de Lógica Maior e Menor –,
mas é na modernidade, com Locke, que se pode dizer que uma teoria do
conhecimento se configura enquanto tal: “Locke considerado, historicamente, o fundador dessa
disciplina com sua obra ‘An essay
concerning human understanding’, em 1690, onde pôs em discussão o problema
do conhecimento”.
Lógica Maior
|
Prescinde da referência do
pensamento aos objetos e considera o pensamento em si mesmo.
|
Pergunta pelo correto.
|
Teoria do Conhec.
|
Tem os olhos fixos justamente na
referência objetiva do pensamento e na sua relação com o objeto.
|
Pergunta pela verdade (concordância com o objeto)
|
Por outro lado, na filosofia
continental, “Muitos consideram que é propriamente com Kant, em sua ‘Crítica da
Razão Pura’, que a Gnosiologia se estruturou numa disciplina autônoma...” (SANTOS,
1969, p.31-32). Seja como for, mesmo com um aparecimento consideravelmente recente,
sua gênese remonta à gênese da própria ciência no século XVII. De acordo com
Dutra (2010), algumas obras podem ser lembradas como “precursoras” do sentido
contemporâneo da epistemologia, a saber: Ensaio
sobre o entendimento humano (Livro IV) – Locke[3], Novos ensaios – Leibniz, Discurso preliminar à enciclopédia –
D’Alembert, Filosofia do Espírito Humano
– Dugald Stewart, Curso de filosofia
positiva – Comte e Discurso preliminar
ao estudo da filosofia natural – John Herschel.
Com Fichte, sucessor imediato de Kant, a teoria do conhecimento aparece,
pela primeira vez, como “teoria da ciência” (HESSEN, 2003) e com Schelling e
Hegel, o amálgama de teoria do conhecimento e metafísica ganhará livre curso,
mas não só nestes como também em Schopenhauer e Hartmann. É somente com o
Neokatismo da segunda metade do século XIX que “esforça-se por separar nitidamente o questionamento
metafísico do epistemológico. No entanto, o problema epistemológico foi tão
vigorosamente empurrado para o primeiro plano que a filosofia corria o perigo
de reduzir-se à teoria do conhecimento” (HESSEN, 2003, p.15).
De modo geral, argumenta Dutra
(2010, p.09-10), “O período que compreende os trabalhos dos racionalistas
continentais europeus, de René Descartes a Immanuel Kant, e também da tradição
empirista britânica, de Locke, Berkeley e Hume, constitui aquele em que surgiu
e se consolidou a epistemologia [teoria do conhecimento] como disciplina
filosófica...”; e a tendência geral é “... identificar a epistemologia apenas
com o trabalho de elaborar teorias do conhecimento (e da justificação), e de
tomar as teorias da investigação como assunto ou da filosofia da ciência, ou da
metodologia científica...” (DUTRA, 2010, p.10), como segue o quadro abaixo:
Contexto de Justificação
|
Contexto de Descoberta ou
Invenção
|
Sentenças prontas que necessitam
ser provadas ou justificadas sua aceitação como verdadeiras.
|
Forma pela qual chegamos às
nossas opiniões ou crenças.
|
Utilização de recursos lógicos e
analíticos para demonstração da veracidade de uma sentença.
|
Estudo dos processos
psico-cognitivos da construção do conhecimento.
|
Referências
BLACHÉ, R. A epistemologia. Lisboa: Presença,
1975.
DUTRA,L. H.de A.Introdução
à epistemologia. São Paulo: Unesp, 2010.
HESSEN, J.Teoria do Conhecimento. 2ed. São Paulo: Martins Fontes,2003.
SANTOS, M. F. dos. Teoria do Conhecimento (Gnosiologia e
Criteriologia). São Paulo: Logos, 1960.
ZILLES, U. Teoria do Conhecimento e teoria da ciência. 2. ed. São Paulo:
Paulus, 2008.
[1]A palavra epistemologia, que significa literalmente
teoria da ciência, só recentemente foi criada [...] Segundo o Dicionário de
Robert, o seu aparecimento nos dicionários franceses data de 1906, no suplemento
do Larousse ilustrado.
[2] Argumenta
Zilles (2008, p.36): “a ideia tradicional é que a teoria do conhecimento, como
disciplina filosófica própria, opõe-se à ideia de metafísica. Para isso não
faltam exemplos da história da filosofia...”
[3] Cf. An
Essay concerning Human Understanding, publicado em 1690.
Comentários
Postar um comentário