É muito comum em nosso dia-a-dia escutarmos frases do tipo: “há remédio pra tudo, menos pra morte”, “se num dá dum jeito, dá do outro”, “em tempos de guerra, urubu vira frango”.
Ou ainda, frases recheadas de crenças religiosas como: “quando Deus fecha uma porta, ele abre uma janela”, “não há coincidência, mas providência”, “não cai um fio de cabelo ou uma folha de
uma árvore que não seja da vontade de Deus”. Excluindo o fato de serem
todos ditos e crendices populares, o que eles teriam em comum? Geralmente,
estes ditos e crendices populares são recitados milagrosamente, quase como
receitas médicas, em momentos críticos que, existencialmente, parece não haver
uma explicação razoável. Ou seja, eles são usados em momentos que a nossa
existência “pega uma peça” em nossa capacidade de organizar racionalmente as
coisas. Assim, recitar um destes ditos ou depositar nossa esperança neste tipo
de crença é ter a certeza que o mundo não é uma grande confusão, como muita das
vezes nos parece, mas é reafirmar para nós mesmos que nossos limites são
temporários, pois não enxergamos ainda a explicação que estaria escondida.
Apesar de usarmos esses ditos como uma explicação para problemas que
aparentemente não teriam uma explicação, eles, na verdade, funcionam, para nós,
como uma crença. Ou seja, eles levam-nos a acreditar que: para todas as coisas há uma explicação,
seja ela qual for. Deus nos livre de pensar que haja alguma coisa que não se
explique! – diria qualquer um de nós à beira de um colapso existencial. Porém,
apesar de usarmos eles com a mesma frequência que a aprece as nossas crises e
de sentirmos aliviados pela sua aparente explicação, estes ditos nada explicam.
Dizer que “para tudo dá-se um jeito”
ou até mesmo, como o nosso ex-presidente Lula dizia, que o brasileiro sempre dá
um “jeitinho” não é oferecer uma explicação às coisas, mas é apenas acreditar
que esta explicação existe. E nós saímos satisfeitos com isso, felizes por
achar que não somos anormais ou que não estamos no fundo do abismo, mesmo que
nunca encontremos esta tal explicação.
Mas há, ainda, outro problema. Mesmo que estes ditos apenas mostrem
uma crença e não uma explicação, eles são tomados como guias para vida de muita
gente. Quantos de nós que diante de um “tudo
posso naquilo que me fortalece!” não se sente tão aliviado e reconfortado
existencialmente que sai daquele momento de nostalgia pronto pra cometer outra
besteira? Isto porque “tudo posso...”!
Mas a pergunta é “o que” me
fortalece? A resposta seria óbvia para nós crentes ortodoxos: Deus, é claro! E
novamente caímos no campo da crença, sem nada explicar. E esta crença, por sua
vez, é tomada como uma regra de vida,
uma base no qual deposito minhas
forças, um verdadeiro fundamento.
Se você é um desses que faz tudo isso que relatamos acima, e “dá
graças a Deus” por isso – provavelmente rejeitando o que falamos – não se
preocupe, você não é a única pessoa que pensa assim. Assim como você, existiu
um filósofo alemão do século XVII que também acreditava no que acabamos de
descrever. Leibniz foi um filósofo, e nas horas vagas teólogo, que perdeu
algumas noites, queimou alguns fósforos, pensando sobre o fundamento da nossa
existência. Assim como nossos ditos populares, Leibniz acreditava que uma única
frase resumia muito bem as nossas crises pessoais: nada existe sem que uma razão
seja dada de forma tal que explique porque uma coisa é assim e não de outra
maneira. Esta frase foi chamada de princípio
de razão suficiente pelo fato de seu autor achar que tudo tem que ser
explicado de modo suficiente. Ou seja, para tudo há uma explicação que nos
convença de modo suficiente. De modo igual aos ditos populares, Leibniz
utilizou esse princípio todas as vezes que um problema aparentemente não
explicável aparecesse. Isto significa que Leibniz acreditava que tudo que não
fosse perfeito, mesmo imperfeito, tinha uma explicação perfeita ou pelo menos
convincente. Assim, todas as vezes que errássemos, escolhêssemos alguma coisa
ao invés de outra, ou mesmo qualquer coisa que acontecesse sem uma devida
previsão, como uma gravidez indesejada, por exemplo, um gol contra, “um fora”
de uma garota, tudo isso tinha uma explicação suficiente de porque foi assim e
não de outro modo. Além do mais, esse enunciado de Leibniz também ficou
conhecido como o princípio do fundamento,
pois se acreditava que ele traduziria nela mesma o próprio fundamento das
coisas.
Mas, os mesmos erros que cometiam os ditos populares cometem o
princípio de Leibniz: ele nos leva a acreditar que por detrás dos problemas
existe uma organização que não foi vista ainda, ele nos força a depositar nossa
esperança mais na crença da existência da explicação do que na própria
explicação e ele tem uma importância tal na vida das pessoas que acabam
funcionando como uma regra de vida, um fundamento. Em outras palavras, o que o
princípio de Leibniz faz é nos forçar a acreditar que existe um fundamento para
tudo, mas ele mesmo não diz o que é e como conseguimos alcançá-lo. O princípio
leibniziano acaba se tornando como um discurso político em campanha eleitoral:
garante que os problemas sociais têm solução, mas nunca mostra como e, no fim,
acabamos nunca os vendo.
Neste momento, você poderia estar se perguntando: com que autoridade
criticamos tão duramente Leibniz e seu princípio de razão suficiente? É aqui
que saltamos do século XVII para o século XX. Contudo, sem sair da Alemanha. De
Leipzig para Messkirch, encontramos a figura de Heidegger, filósofo, quase
teólogo, quase místico, quase ateu que em 1928 lecionando um curso sobre lógica
assumiu o desafio de questionar seu conterrâneo germânico. Heidegger acusa
Leibniz de tornar o princípio de razão suficiente – nada é sem razão – em uma “frase de efeito”, um “jargão”, ou mesmo
uma oração do “credo” que usamos para espantar os diabos. Assim, acrescenta
Heidegger, o princípio de Leibniz nada fala do fundamento, ou seja, não oferece
uma explicação, apenas garante que ela existe. Porém, e Heidegger admite isso,
Leibniz nos acordou para algo até então não pensado: por que temos que justificar tudo que dizemos e fazemos? Qual o problema de admitirmos, sem entrar em
crise, que há coisas não possuem explicações? Heidegger percebe que quando
Leibniz nos força a acreditar que tudo tem uma explicação, isso nada mais seria
que uma crença. Então, o filósofo da Floresta Negra se debruça sobre essa
possibilidade: um mundo sem justificativas e explicações. Mas como isto seria
possível?
Quando Leibniz abre os olhos de Heidegger e o faz perceber que este
papo de que tudo tem que ter uma explicação é mais uma conversa mole de teólogo
que uma necessidade do mundo da vida, Heidegger decide investigar até que ponto
precisamos mesmo de justificativas. E para isso, ele decide ir a fundo, decide
buscar a “essência do fundamento”.
Mas, para ir num lugar que nem Heidegger sabe se existe, ele novamente precisa
da ajuda de Leibniz. Leibniz, em suas loucuras filosóficas, descobriu que todos
nós somos formados por partículas invisíveis chamadas de mônadas. Se você achou
que Leibniz estava falando do átomo, nem passou perto. As mônadas são forças
invisíveis e sem matéria que harmonizam nosso mundo a partir de sim mesmas.
Elas seriam como “microcosmos” que refletem todo o macrocosmo, ou seja, cada
mônada percebe por si mesma todos os movimentos do universo produzidos pelas
demais mônadas. Mesmo as coisas mais sem lógica que fazemos ou que acontecem no
nosso dia-a-dia, elas conseguem perceber e harmonizar os fatos. Esta harmonia,
no entanto, é garantida, pois tais mônadas são produtos da criação divina.
Assim, na verdade, a crença na vontade divina seria a única explicação
suficiente para dizer de coisas que a principio não haveriam explicação.
Para Heidegger, estas forças invisíveis e imateriais denominadas de
mônadas estariam muito aquém da pretensão de seu idealizador, ou seja, de
vê-las como fundamentos para o nosso mundo. Isto porque Leibniz, no fim, acaba
recorrendo à teologia para justificar seu argumento. Heidegger jamais aceitaria
que uma crença pudesse ser o fundamento das vidas pessoas. Deveria haver algo
que pudesse explicar e não simplesmente garantir que esta explicação existisse.
Esta explicação, que Heidegger vai chamar de essência do fundamento, o filósofo
também retira da filosofia leibniziana. O princípio de Leibniz diz: algo
dever ter uma razão para as coisas sejam assim ao invés de qualquer outra coisa.
Heidegger percebe que o mais importante desta frase não é acreditar que existe
esta razão, como sempre se acreditou, incomodando até Deus para isso. mas, pelo
contrário, é no fato de que uma coisa tem que ser assim ao invés de qualquer
outra coisa, até mesmo ao invés do nada. Este modo de dizer seu princípio, ao
invés de, mostra que o princípio de Leibniz é na verdade uma grande escolha. Esta escolha é sempre por algo melhor, como afirma Leibniz na sua teoria dos melhores
mundos possíveis. Escolher, diz Heidegger, é exercer a liberdade. Portanto, a
única coisa capaz de explicar os fatos, principalmente os fatos mais ilógicos,
é uma liberdade fundamental. Assim, por anos, acreditamos que a explicação para
as coisas, os fundamentos, eram garantidos pelo simples fato de que era absurdo
pensar que não existisse uma explicação para tudo. Mas, quando investigamos a
fundo o que justifica essa crença de que tudo tem que ter uma explicação,
chegamos, com Heidegger, numa liberdade fundamental.
Esta liberdade que Heidegger apresenta, não pode ser entendida como
uma opção que eu tenho na vida. Ou seja, não é porque eu posso optar em
assistir esta comunicação ou ir para outra melhor que estou sendo livre.
Roubando uma frase do famoso filósofo francês Sartre, estamos condenados a ser livres.
A única coisa que não optamos é em não ser livres. Mesmo o nascimento e a
morte, há condições, mesmo que remotas, de mudanças, como o suicídio, o aborto,
a controle de natalidade etc. Todos, querendo ou não nascemos livres e não há
nada que eu ou ninguém possa fazer para que deixemos de ser livres. Essa
liberdade fundamental é a capacidade que temos de autotranscendermos. Esta
autotranscendência é a tendência que temos de nos lançarmos no mundo. Assim, a
única explicação para que as coisas acontecem é que, nós como humanos,
organizamos o mundo e fazemos isso a partir de nosso lançamento no mundo. Tudo
o que acontece, de alguma forma, depende de nossa lançamento no mundo. Somos
responsáveis diretos ou indiretos pelo mundo porque estamos jogados nele e
tendemos a lançarmos sempre nesse mundo.
Porém, ainda assim, podemos questionar o que justifica essa
liberdade fundamental humana? Aqui é o ponto central do pensamento de
Heidegger. É o que o filósofo chamou de essência do fundamento. Para Heidegger,
a liberdade por ser algo que nos move de modo mais primitivo e essencial, ela
não é apenas um capricho humano, mas compõe e essência humana. Esta essência
humana, por sua vez, é formada pelo simples movimento da liberdade
autotranscendente. Para aqueles que já sacaram a de Heidegger, o que explica
toda essa confusão até relatada é simplesmente nada! Nós, como humanos lançados
no mundo, temos por justificativa final um abismo, um vazio que ao mesmo tempo
nos inquieta e não nos fundamenta. Somos um buraco na existência, simplesmente
um absurdo e por isso produzimos tantos absurdos. No fim, Heidegger quer
mostrar que não precisamos justificar tudo, pois nem tudo há justificação. Essa
mania infantil e perguntar pelo porque das coisas, apenas serve para as
crianças, mas não tem serventia nenhuma. Somos essencialmente livres dos
porquês. Somos livres dos fundamentos e, graças a Deus, até de Deus. Acredito
que você deve, nesse momento, estar se retorcendo e balançando a cabeça
discordando totalmente do que estamos dizendo. Mas, para Heidegger, até para
você discordar disso, você precisa ser essencialmente um vazio e não
determinado por nada. Seriamos nada mais nada menos que uma total ausência de
sentido?
Em nenhum momento de nossa fala dissemos que Heidegger abandona o
sentido para vida. Não precisamos sair daqui e pular da primeira ponte. Pelo
contrário, ele aposta que tem mais sentido na liberdade vazia do que na prisão
teológica de ter um criador. Se somos criados por alguém, então devemos a este
criador e não somos verdadeiramente livres. Mas Heidegger nos ensina uma última
coisa, que é mais cristão que qualquer outra coisa cristã. Segundo nossos
nobres filósofos cristãos, como Agostinho, por exemplo, a criação se dá numa relação
totalmente livre de Deus para com as criaturas. Essa liberdade deve ser tal que
qualquer coisa pode tirar a humanidade dessa dinâmica nos tornando verdadeiros
marionetes nas mãos de Deus. Como diria o nobre físico, também alemão, Eistein,
Deus acabaria jogando dados. Portanto, precisaríamos de uma radical liberdade
frente a Deus para que nossa relação para com ele seja autêntica e não já
preestabelecida. Qualquer dependência a Deus nos tiraria a liberdade radical
frente à sua pessoa. Nesse sentido, Heidegger nos ajuda a ver que somente um
vazio como fundamento, um fundamento sem fundamento nos libertaria dos grilhões
do inferno e nossa crença se daria por convicção. Enquanto nos vermos como
criaturas de Deus, e enquanto Deus for nossa crença fundamental, não haveria
nem a própria criação, pois até para Deus criar ele precisa de uma liberdade
radical.
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